Um retrato da intervenção russa na Síria

Autor: Pedro Paulo Rezende

Fonte: Arsenal – Geopolítica e Defesa

É inegável o impacto da intervenção russa, aprovada pelo Parlamento em Moscou no dia 30 de setembro de 2015, na Guerra Civil da Síria. Quando o processo teve início, em 1º de outubro de 2015, o regime sírio de Bashar Al Assad, de caráter laico, controlava pouco mais de 25% do território do país. O Estado Islâmico da Síria e do Levante dominava cerca de 30% e o restante estava dividido entre 12 grupos do que o Ocidente batizou de “oposição democrática”, formado, em sua enorme maioria, por facções religiosas sunitas bancadas financeiramente pelas monarquias absolutistas do Golfo Pérsico e apoiados por uma coalizão chefiada pelos Estados Unidos.

Hoje, 29 meses depois, os últimos focos de resistência nas proximidades de Damasco, a capital, foram eliminados no dia 21 de maio. Graças a acordos entre governo e opositores, os rebeldes são transportados por ônibus para uma faixa de 20% do território mantida, junto às fronteiras iraquiana e turca, graças ao suporte militar de Washington. A presença norte-americana tornou-se ainda mais problemática com a recente intervenção ordenada pelo presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, colocando em campos contrários os interesses de dois dos maiores integrantes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Os focos de resistência opositores sob o alcance do regime sírio caem aos poucos em ações de cerco e o governo de Assad, legal e legítimo, controla a quase totalidade dos grandes centros econômicos do país.

É importante ressaltar que estes avanços ocorreram com o uso de forças extremamente limitadas. O contingente russo no país resume-se a 10 mil homens, a grande maioria, cerca de 8 mil, envolvido na proteção do porto de Tartus e do aeródromo de Khmeimim, bases que atuam no suprimento logístico e no suporte aéreo das operações militares.

Autossuficiência

Quando o processo de intervenção teve início, a pedido do governo sírio, os especialistas ocidentais garantiram que a Federação Russa não teria condições de manter o volume inicial de operações, devido às sanções econômicas determinadas pelos Estados Unidos e pela União Europeia como punição pela reincorporação da Crimeia, ocorrida em 2015.

A avaliação não levou em conta o potencial industrial e agrícola herdado da União Soviética. O país, hoje, retomou o crescimento, caminha para a autossuficiência e apresenta um índice de desemprego de apenas 5%. Além disto, ao manter uma presença limitada no Levante, a Rússia diminuiu o impacto da intervenção militar em sua economia. Para isto, investiu na reconstrução do Exército Árabe da Síria.

O primeiro passo envolveu a reposição dos equipamentos perdidos durante as ofensivas mantidas pelo Exército Islâmico e pelos grupos rebeldes. Foram transportadas mais de 4.000 unidades, que totalizaram 1.608.000 toneladas de carga, por meio de 342 navios e 2.278 voos. Unidades russas de manutenção e reparação instalaram a infraestrutura necessária para apoiar, manter e corrigir deficiências ou mau funcionamento nos equipamentos em instalações na base aérea de Khmeimim e no porto de Tartus.

Para reconstruir o potencial combativo do Exército Árabe da Síria, a Rússia entregou sistemas de ponta, como os carros de combate T-90U — que resistiram a impactos diretos de mísseis antitanques ocidentais como o MILAN, francês, e o TOW norte-americano — e o lança-foguetes TOS-1A Buratino, que emprega munições termobáricas. Ao mesmo tempo, deslocou especialistas para servirem de consultores às unidades sírias. Hoje, os comandantes de brigadas do país árabe contam com apoio direto de oficiais russos que auxiliam, em tempo real, no processo de tomada de decisões. Para isto, dispõem do apoio de aeronaves remotamente pilotadas e com pequenas unidades das melhores forças especiais da inteligência russa, equivalentes aos SEALS da Marinha estadunidense, que trabalham de forma independente em campo.

Com estas medidas simples e de certa forma baratas, o governo sírio conseguiu retomar o moral para lançar novas ofensivas contando com apoio aéreo efetivo oferecido pela Força Aérea e pela Marinha da Federação Russa. É preciso ressaltar que a oposição conta com fluxo constante de material ocidental e de origem soviética. Em reportagem publicada pelo jornal búlgaro Trud, a jornalista Dilyana Gaytandzhieva comprovou, por meio de documentos, o envio de armas búlgaras, tchecas e romenas para os rebeldes usando 350 voos classificados como mala diplomática. O equipamento, segundo a documentação, teria como destino o Arsenal de Picatinny, nos Estados Unidos.

Outro ponto ajudou o processo de reconstrução do Exército Árabe da Síria: a atuação desastrosa da chamada “oposição democrática” nas áreas que manteve sob seu controle. A imposição da Lei Islâmica, a Sharia, com a imposição do uso de véu às mulheres, ações agressivas contra minorias religiosas muçulmanas (alauíta, sufi e xiita) e cristã, como assírios e coptas, terminaram por minar o apoio popular e por favorecer o fluxo de voluntários dispostos a lutar por Bashar Al Assad, mas é óbvio que o fator predominante para a virada na Síria foi a eficiência do apoio aéreo oferecido pelos russos.

Apoio Aéreo

Empregando aviões, helicópteros e mísseis de cruzeiro, cerca de 40 mil missões foram realizadas desde o início da intervenção. A lista de equipamentos testados é extremamente abrangente e envolve, praticamente, todos os modelos de aviões de combate empregados pela Força Aérea e pela Marinha da Federação Russa. Neste processo, 215 diferentes tipos de armamentos modernos e avançados foram empregados durante a operação, inclusive o novíssimo caça furtivo Sukhoi Su-57. Capacidades foram reveladas surpreendendo o Ocidente. Quando pequenas corvetas de 500 toneladas de deslocamento que operam no Mar Cáspio atingiram, com mísseis de cruzeiro Kalibr, alvos na Síria, a Marinha dos Estados Unidos retirou temporariamente seu porta-aviões do Golfo Pérsico.

A Marinha, empregando, além das pequenas corvetas, submarinos convencionais e fragatas, disparou mais de 100 Kalibr. Ela também executou missões a partir do porta-aviões Almirante Kuznestsov, as primeiras da história da Rússia, atingindo 1.252 alvos terroristas.

Um ponto importante, pouco destacado pela mídia ocidental, foi o emprego de aeronaves remotamente pilotadas. O jornal israelense Haaretz destacou em um artigo, publicado em 2016, que um aparelho de pequeno porte invadiu, durante 30 minutos, o território das Colinas de Golan. Para neutralizá-lo foram disparados dois mísseis Patriot de fabricação norte-americana, que falharam. Um caça F-16 decolou e tentou engajar o alvo, que realizou manobras de evasão, aparentemente com o uso de inteligência artificial, e retornou incólume ao território sírio.

A intervenção utilizou bombardeiros estratégicos Tupolev Tu-160 e Tu-22M3 armados com mísseis Kh-101; caças-bombardeiros Sukhoi Su-24, Su-30 e Su-34; aviões de ataque Su-25 e helicópteros de ataque Mil Mi-35, Mi-28 e Kamov Ka-52. O total de perdas, menos de dez aeronaves e cerca de 200 homens (incluindo combatentes de terra), foi reduzido diante do volume de operações envolvido.

As unidades russas também enfrentaram desafios novos. As forças de oposição usaram enxames de drones armados com pequenas bombas explosivas para atacarem Khmeimim e o porto de Tartus. Nenhum deles atingiu o alvo. De um total de 14, oito foram derrubados por mísseis PANTSIR S-2. Usando sistemas de interferência, a defesa tomou o controle de seis drones, capturando-os. Ao acessarem os dados, verificaram, com surpresa, que estavam programados para atingirem milimetricamente, com a ajuda de GPS, alvos valiosos, como aviões de combate, o que prova o envolvimento de potências estrangeiras.

Para evitar problemas como os enfrentados pela OTAN durante a invasão de Kosovo, quando os estoques de armas inteligentes da Coalizão praticamente se esgotaram, os pilotos russos treinam para usar armas convencionais com grande precisão. Este approach tem dado certo e o total de baixas colaterais se assemelha ao verificado em ataques com equipamentos guiados realizados pela Aliança Ocidental na Síria, uma prova de que o homem pode superar a máquina.

Nota do Editor do Blog DG:  Pedro Paulo Rezende é um veterano jornalista, especializado em Defesa e Geopolitica.

Negócios de família

Por: César A. Ferreira

A guerra e tudo que a envolve possui um caráter triste, desonroso, cruel e canalha. Não é raro, mas antes comum, a existência de oportunistas que procuram ganhos pessoais com eventos que custam a morte e sofrimento para os seus semelhantes. A guerra civil Síria, ora em curso não exceção e neste exato momento fortunas são construídas na Turquia a expensas dos sofrimentos sírios, na forma de um intenso contrabando de petróleo, mas que também envolve algodão, armas, fosfato e mesmo escravas. Este último item, que mais parece algo perdido no tempo, comércio decadente marcado pela história, foi revivido dado, ao costume do Estado Islâmico em presentear os combatentes que se destacam, com esposas. Não existe pudor quando o objetivo é o lucro.

Dentre as famílias que se destacam com este comércio, uma delas ganha importância inaudita, devido o peso político, trata-se do sobrenome Erdogan, e o membro destacado é Bilal Erdogan, terceiro filho do Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan. Tendo recebido uma educação esmerada, da qual se inclui a obtenção de grau de mestrado na prestigiosa Harvard University John F. Kennedy School of Government, no ano de 2004, Bilal Erdogan tornou-se um empresário de meteórico sucesso, onde a sua participação societária na empresa de fretamento marítimo, “BMZ Grupo Denizcilik ve Sanayi Insaat Anonim Şirketi”, se destaca. As acusações de obtenção de empréstimos fraudulentos em bancos públicos se avolumam, mas caem rapidamente no esquecimento, visto que a Turqia é  uma nação anestesiada com o seu sucesso recente e nem mesmo a participação de familiares negócios parece perturbar a paz social.

Uma das acusações que versa sobre Bilal Erdogan é a de viabilizar o comércio do petróleo contrabandeado pelo Estado Islâmico através da fronteira turca, embarcando-o nos tankers adquiridos pela BMZ, encomendados junto ao İstanbul’s Türkter Shipyard, navios com cerca de 140 metros de extensão e calado de 5 metros, com pouco mais de 6.000 toneladas brutas, atendendo ao limites “Volga-Don, Max”, ou seja, preparados para tráfego no canal Volga/báltico.  O porto de embarque para estes navios é o de Çeihan, ou Ceyhan, porto estatal, o que inclui o terminal para embarque de óleo.  Quando confrontado com as atividades do filho, a resposta emitida pelo presidente turco é a que as atividades empreendidas pelo filho são legais, não havendo comprovação alguma de fonte ilícita das mesmas. De fato, existe um componente que mascara o atribuído comércio de 40.000 barris brutos diários do Estado Islâmico, que o envio de petróleo curdo advindo do Iraque. Acontece que o governo iraquiano considera a venda do petróleo extraído das terras curdas do Iraque como um extravio, um contrabando, de uma riqueza nacional. Todavia, a região autônoma do curdistão iraquiano age como se nação independente fora, ainda mais quando se defende praticamente só contra o Estado Islâmico, por isso, bem como por outras razões, Erbil, em termos práticos, não reconhece a autoridade de Bagdá, sendo esta existente apenas nominalmente. Assim, para todos os efeitos, o petróleo comercializado é curdo, facção que conta com a benção da União Européia e dos EUA. Forma melhor para mascarar o petróleo roubado da Síria não há.

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O “Armada Pride” um dos navios “Volga-Don Max Class” da frota do grupo BMZ. Imagem: internet.

O interessante, neste embate atual, sobre quem compra o óleo roubado da Síria é que os navios do grupo BMZ podem ser rastreados, localizados nos portos de destino, algo que nestes tempos de tecnologia da informação se dá em tempo real, por isso temos, como exemplo o Tanker “Armada Breeze”, do grupo BMZ, na data de 01 de dezembro de 2015, próximo ao seu destino, o porto de Bilbao, Espanha, trafegando pela Baía de Biscaia. O mesmo pode-se obter de outros tankers da frota BMZ: “Poet Qabil”, próximo a Rotterdeam, Holanda, no dia 29 de novembro; “Begim Aslanova”, junto a Savona, Itália, no dia 03 de dezembro, “Mecid Aslanov”, próximo a Ravenna, Itália, no dia 04 de dezembro e “Sovket Alekperova”, trafegando no Mar do Norte em direção a Thames, Grã-Bretanha. Percebe-se, portanto, o quanto as rotas realizadas pela frota BMZ são elucidativas, afinal, os portos de destino destes tankers são pertencentes à nações sócias da OTAN, isto, sem falar nas paradas para Odessa (Ucrânia), que são frequentes.

Outros negócios

Nem só do petróleo vivem os saqueadores turcos das riquezas sírias, aproveitam-se para roubar o que for possível. Um exemplo disso é a retirada de todos os equipamentos industriais da cidade de Aleppo, por membros do Estado Islâmico, comercializados na Turquia. Outro comércio ilegal, ainda mais danoso, versa sobre as antiguidades históricas da Síria, cujos objetos são comercializados sem o mínimo pudor em Ancara e Istambul. Além do saque há outra forma de ganhar dinheiro com o sofrimento do povo sírio: a chantagem dos refugiados. Concentrados em imensos campos de tendas, os refugiados são uma arma de barganha política de Ancara por recursos internacionais, notadamente da Europa Unida, destino preferido dos infelizes. Dá-se que tudo que se faz necessário para tais pessoas é adquirido de fornecedores turcos, de água potável aos remédios. Outra mina de outro, altamente condenável é a prestação de serviços médicos aos insurgentes, que para isso cruzam a fronteira da Síria com a Turquia com notável facilidade. Vários hospitais prestam serviços médicos e são ressarcidos pelos serviços prestados. A assistência médica aos insurgentes é tão profícua que até mesmo um hospital atende especificamente os feridos do Estado Islâmico, hospital este localizado em Sanliurfa, mais conhecida como Urfa, cerca de 150 km a leste de Gaziantep e 1,300 km a sudeste de Istambul, onde trabalha, para espanto de alguns, a enfermeira Sümeyye Erdogan, primogênita do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan. Educada em Londres, a herdeira abraçou de tal intensidade os preceitos da jihad, que se propôs mudar-se para Mosul, conhecido centro de extração, benefício de petróleo e de comunicação do Estado Islâmico. Mosul é a cidade para a qual foi enviada, à revelia do governo iraquiano, uma brigada do Exército Turco, aparentemente para proteger os interesses do Estado Islâmico, pois outra resposta é difícil de encontrar para este movimento.

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Sümeyye Erdogan. Foto: internet.

Como se percebe, a Turquia funciona como cobertura para o Estado Islâmico e isto se dá não apenas ao nível governamental, de Estado, mas como sociedade, ávida por buscar lucro no sofrimento vizinho. Nada mais humano, ou mais comum. Ganhar dinheiro, dizem, é uma arte, e esta arte é melhor conduzida em situações de pouco controle e de fácil tráfego de influências. Ora, ora, que situação melhor do que a proporcionada por uma guerra. Existe situação melhor para lucrar? Bem… Bilal Erdogan conhece a resposta.