Shahed – 136: o beijo da morte

O drone iraniano Shahed – 136 revela ao mundo a nova face da guerra: a simplicidade aliada à inovação doutrinária.

Por: César A. Ferreira

Drones não são propriamente uma novidade no campo de batalha, cumprem missões de reconhecimento, vetores não tripulados de ataque. Portanto, o desenvolvimento de uma versão de ataque de alvos determinados por reconhecimento prévio, ou de oportunidade por meio de ação autodestrutiva seria um passo esperado. Entre estes, um drone que se destaca: o iraniano Shahed – 136.

O Shahed – 136 é um drone autodestrutivo, de constituição simples, com fuselagem incorporada a uma asa delta e superfícies de controle nas extremidades, possui propulsão “pusher”, impulsionado por um motor MD 550 de 50 HP. A sua estrutura é robusta, porém simples e leve, possui uma ogiva de 80 libras (36,28 kg), a sua autonomia se situa entre 1.800 e 2.500 km, dependendo muito do regime de vôo, velocidade de 185 km/h, exibe um comprimento de 3,5 metros e uma envergadura de 2,5 metros. O seu peso total é de 200 kg. Observa-se, portanto, que é um veículo marcado pela simplicidade, dotado de motorização de uso comercial, de baixa velocidade e assinatura acústica distinta, característica facilmente perceptível, todavia, é dotado de orientação inercial e/ou geolocalização por sinais satelitais, mostrou-se bastante preciso nos testes e repetiu a performance em combate real, caso do seu uso na guerra civil síria e no corrente conflito ucraniano.

A simplicidade presente neste projeto, pode-se dizer, cumpre a função de viabilizar o Shahed – 136 como loitering munition[1](termo sem tradução para a língua portuguesa), visto que atende o conceito de descartabilidade, ou seja, de ser uma arma de baixo custo e de fácil produção. Não é excepcionalmente veloz, possui uma assinatura acústica alta, no entanto, pode ser fabricado em quantidades exorbitantes e assim também ser utilizado no campo de batalha. É infinitamente mais barato do que qualquer míssil que venha a alvejá-lo, por mais simples que este míssil seja, mesmo sendo um SHORAD [2] rádio controlado ou um MANPAD [3]. Por isso, o simples uso do inimigo dos sistemas de artilharia antiaérea dotada de mísseis já será, por si, uma vitória, pois estes possuem custo orçado na casa dos milhares de dólares, valor em muito superior ao do drone…  De fato, este tipo de arma, loitering munition, tende a ressuscitar como armas de artilharia antiaérea os canhões de tiro rápido de 20, 23, 30 e 35 mm, bem como as quadras de metralhadoras pesadas, pois tais sistemas de artilharia antiaérea de tubo, então relegadas ao trabalho secundário no combate urbano, dado a obsolescência percebida na função primária, a antiaérea, agora podem retornar a sua antiga função, graças ao perigo representado pelos “drones kamikazes”.

O Shahed – 136 foi utilizado no presente conflito ucraniano com sucesso apreciável. O seu debut se deu no dia 13 de setembro na cidade de Kupiansk, onde eliminou todo um comando tático ucraniano abrigado numa casa nos arredores desta cidade. Mais tarde, num outro front, Kherson, apareceram imagens e o reporte da destruição de obuseiros, consistindo em vestígios de um obuseiro rebocado M-777 A2, dois obuseiros autopropulsados 2S1 Gvozdika, de 122mm, e de dois outros obuseiros autopropulsados 2S3 Akatsiya, 152mm, além de caminhões militares. Todavia o ataque mais impressionante se deu na cidade de Odessa, onde vários alvos foram atingidos, sendo o mais impactante a edificação que sediava o “Comando Sul” de operações das armas ucranianas. As filas de ambulâncias no local demonstraram de maneira dramática a efetividade do ataque.

Pode-se dizer muitas coisas deste conflito ucraniano, entre elas, que esta é “a guerra do drone”. Tornaram-se indispensáveis e se é verdade que os drones maiores de uso tático tiveram as expectativas neles depositadas como muito elevadas e se tornando grandes decepções, caso do turco “Bayraktar TB-2”, o mesmo não se pode dizer dos menores, sejam na função de reconhecimento, caso do “Orlan” (russo), ou na função tática, exemplificados pelos drones Kub-Bla e… Shahed – 136.  

Notas:

[1]: Loitering Munition: não existe para o português uma tradução exata adequada, por isso se tem várias sugestões para traduzir este termo, tais como: “munição de vadiagem”, “munição vagante”, “munição de oportunidade”, “munição volante”, “munição aleatória”, “munição vadia”. Em geral os editores se apegam ao pouco ilustrativo “drone kamikaze”, para descrever este tipo de arma.

[2]: SHORAD – acrônimo em inglês para “Short Range Air Defense”, cujo significado em português é “Defesa Aérea de Curto Alcance”.

[3]: MANPAD – acrônimo em inglês para “Man Portable Air Defense System”, que em português ganha o nome de “Sistema de Defesa Aérea Individual, ou de Ombro”.

Nota complementar:

No dia 27 de setembro foi reportado a destruição de dois obuseiros “Hyacinth-B”, ou em português, “Jacinto-B”. obuseiro de 152mm, dois obuseiros D-20 de 152mm, e por fim de outros dois FH-70, obuseiros de origem italiana de 155mm. Todos eles rebocados e vitimados pelos drones kamikazes Shahed – 136. Além destes obuseiros, um depósito camuflado com cerca de dois mil projéteis e retrocargas foi destruído.

O F-104 encontra o seu algoz

Por: César A. Ferreira

Em 1971 o MiG-21 já havia consolidado a sua reputação nas suas mais diversas versões, pilotos de Mirage III e F-4 Phantom sabiam que o MiG-21 consistia num inimigo temerário. Porém, o caça soviético não havia se confrontado, ainda, com um oponente leve e ainda mais rápido do que ele: o F-104A, o “galgo da Lockheed”.

A Força Aérea do Paquistão (PAF.,ing.)[1], era a antiga operadora do F-104A, já presente no inventário paquistanês quando do conflito de 1965, onde a PAF exibira elevada capacidade operativa, todavia, o F-104A não tivera naquela guerra uma participação destacada, ao contrário dos onipresentes F-86F… Pois, em 1971 a situação seria diferente e os F-104A teriam um adversário na mesma altura.

Em 1971 os MiG-21 da Força Aérea da Índia (IAF., ing.)[2], estavam padronizados no padrão FL. No dia 12 de dezembro, segundo arquivos indianos e 13 de dezembro segundo relato da PAF, um elemento de F-104A da PAF que estava incumbido de atacar a Base Aérea de Jamnagar, foi interceptado por um elemento de MiG-21 FL. Os F-104A paquistaneses estavam equipados com tip tanks[3] e dois misseis AIM-9B nos cabides. Enquanto faziam a sua passagem foram alvejados por mísseis K-13 e o líder, Wing Commander Mervin L. Middlecoat foi abatido. O Tenente Tariq Habib relata que o Comandante Middlecoat ejetou e o seu avião penetrou nas águas do golfo de Kuch, invertido. Deu-se conta que um MiG-21 se postava à sua direita e com after-burner ligado evadiu-se do local… O relato de Habib é explicito em dizer que o elemento de ataque permanecera minutos a mais sobre o alvo para corrigir a passada [4}, isto, porém não tira o brilho da vetoração da IAF que levou o elemento de MiG-21 para a interceptação com sucesso. O piloto que logrou a vitória aérea foi o Tenente Aviador Bharat B. Soni (MiG-21 FL). Os relatos indianos dão conta que apesar de vetorados, o elemento de MiG-21 já tinha os dois F-104 no visual antes de efetuarem a corrida para o alvo, de tal maneira que a demora na correção da passada narrada por Habib pouco influenciaria. O F-104A abatido de Middlecoat ostentava número seriado 56-773, e segundo o relato indiano o míssil K-13 não travou no alvo, por ter se perdido pelo uso defensivo de flares por parte de Middlecoat, sendo por isso abatido a tiros de canhão.

A Índia alega o abate de 5 F-104A no conflito de 1971, enquanto a PAF admite apenas a perda de outros dois destes caças, sendo uma destas perdas atribuída à artilharia antiaérea indiana [5], totalizando as perdas em três aeronaves F-104A. No dia 17 de dezembro um elemento de MiG-21 FL [6] efetuava a escolta de dois elementos de HF-24 “Marut” em missão de ataque. Naquele momento um elemento de F-104A, transferidos para a PAF da Jordânia patrulhavam a área Naya Chor. Estes modelos provindos da Real Força Aérea Jordaniana não tinham adaptação para disparo do míssil AIM-9 a partir dos pilones internos, obrigando a PAF optar por tanques, ou mísseis nas pontas das asas. Neste caso, a PAF optou por colocar no ar uma CAP noturna de F-104A armada apenas com canhões, dado que sem os tanques a permanência em patrulha de combate seria absurdamente breve… Pois, a narrativa do combate aponta que o elemento de MiG-21 FL tornou-se ciente da presença da CAP da PAF com antecedência, pois os paquistaneses nos seus relatos apontam que a estação de radar de Badin informara aos pilotos que dois inimigos deles se aproximavam, vetorando-os, então, para uma aproximação frontal. Após a passagem frente a frente, a narrativa paquistanesa afirma que no afã de posicionar-se em posição ideal de tiro atrás do líder do elemento de MiG-21, o Tenente Aviador Salmar Changezi foi por sua vez enquadrado e abatido pelo ala do elemento de MiG-21, no caso pelo Tenente Arun K. Datta, que teria disparado dois mísseis K-13, o primeiro tendo errado o alvo, o segundo atingindo-o com sucesso. O líder do elemento de F-104A, Tenente Aviador Rachid Bhatti, desengajou e retornou a base da Masroor. O relato de Bhatti é interessante no sentido que ele narra que Changezi estava num ângulo acentuado demais para fazer fogo com o canhão, entusiasmado para corrigir e abater o MiG à sua frente e não se deu conta que se posicionava de maneira ideal para o ala do líder do elemento indiano. O primeiro míssil de Datta teria sido disparado de forma precipitada, o segundo num ângulo de engajamento ideal. O F-104A de Changezi, ostentando o número de série 56-787 explodiu, sem chances para ejeção.

Os combates evidenciaram que o MiG-21 se mostrara superior para o combate aéreo aproximado perante o F-104A, isto se evidencia no combate de Naya Chor, onde numa refrega 2×2 um piloto da PAF foi vaporizado no ar e o outro que tudo assistia no “poleiro” [7], preferiu antes salvar a própria vida do que perseguir uma estela de herói. A PAF é uma força aérea aguerrida, treinada na doutrina da USAF e orgulhosa das suas tradições, por isso a sua narrativa reforça a posição de interioridade relativa dos seus pilotos, ainda que isso possa ser aceito como uma “verdade” no combate de Middlecoat, onde fora interceptado, não se pode dizer o mesmo no caso de Changezi. O fato é que muitos pilotos disseram que para um dogfight o “galgo da Lockheed” se comportava como se tivesse “tijolos ao invés de asas”. De fato, o interceptador F-104A que despontava como inadequado para a função de superioridade aérea, por motivo inescrutável acabou como o caça de ataque padrão europeu, na versão G e S. No velho continente equipou forças aéreas da OTAN e de países que na época não faziam parte do pacto, caso da Espanha (onde foi empregado na função original de interceptador). Do tratado atlântico, a Alemanha, Bélgica, Grécia, Noruega, Holanda, Itália e Turquia o tinham como caça e dizem as más línguas, que na convivência diária com o “fazedor de viúvas” grassava nos seus operadores uma inveja mortal da Armée de l’air com os seus Mirage III…

Notas:
[1]: PAF – Pakistan Air Force.

[2]: IAF – Indian Air Force.

[3]: Tip Tanks (inglês) – Tanques de ponta de asa.

[4]: O relato fala em um atraso de 60 a 120 segundos sobre o alvo.

[5]: Abatido em 5 de dezembro de 1971 pelo 27º Regimento de Defesa Antiaérea, na área de Amristsar, ação atribuída ao artilheiro Hav Ramaswamy. O F-104A de número seriado 56-804 era pilotado pelo Tenente Amjad Hussain, que ejetou e foi capturado.

[6]: Baseados em Uttarlai.

[7]: “Não se contesta a história do piloto que retorna” – o axioma militar explica em muito a situação, não se pode criticar o fato de Rachid Bhatti não ter perseguido o elemento de MiG 21 FL, pois estes efetuaram uma curva em direção a própria sua base desengajando do combate, provavelmente por conta do consumo de combustível, motivo que já afetava Bhatti, com uma hora de patrulha já efetuada quando se deu a refrega.

Características do MiG-21FL:

Velocidade máxima: 2.175 km/h (1.170 kn.);
Velocidade máxima em Mach: 2,0 Ma;
Alcance: 1 210 km;
Teto máximo: 17 800 m. (58 400 ft.);
Armamento: mísseis K-13 (AA2 “Atol”). POD GP-9 (GsH 23mm, geminados).
Comprimento:14,5 m. (47,6 ft.);
Envergadura: 7,154 m (23,5 ft.);
Altura: 4 m. (13,1 ft);
Área das asas: 23 m² (248 ft².);
Alongamento: 2.2;
Peso carregado: 8 825 kg. (19 500 lb.).

Motor

Tumansky: R11F2S-300;
Tipo: turbojato com pós-combustor;
Comprimento: 4.600 mm (181,1 pol.);
Diâmetro: 906 mm (35,7 pol.);
Peso: 1.124 kg (2.477 lb);
Componentes:
Compressor: Compressor axial , (LP) 3 estágios, (HP) de 3 estágios;
Empuxo máximo:38,7 kN (8.708 lbf);
60,6 kN (13.635 lbf) com pós-combustor.
Relação de pressão geral: 8,9:1;
Temperatura de entrada da turbina: 955 °C (1.750 °F.);
Consumo específico de combustível:
97 kg/(h·kN) (0,95 lb/(h·lbf)) em cruzeiro;
242 kg/(h·kN) (2,37 lb/(h·lbf)) com pós-combustor;
Relação empuxo-peso: 53,9 N/kg (5,5:1).

Características do F-104A:

Comprimento: 16,66 m. (54,8 ft.);
Envergadura: 6,63 m. (21,9 ft.);
Altura: 4,11 m. (13,6 ft.);
Área da asa: 18,22 m. (196,1 ft.);
Aerofólio: Biconvexo 3,36% raiz e ponta.
Peso vazio: 6.350 kg. (14.000 lb.);
Peso máximo de decolagem: 13,166 kg. (29.027 lb.);
Velocidade máxima: 1.528 mph (2.459 km/h, 1.328 kn);
Velocidade máxima: Mach 2.
Alcance de combate: 420 mi (680 km, 360 mn);
Alcance translado: 1.630 mi (2.620 km, 1.420 mn);
Teto de serviço: 15.000 m. (50.000 ft.);
Taxa de subida: 240 m/s (48.000 ft./minuto);
Carga da asa: 510 kg/ m²;
Armamento:
Canhões: 1 × 20 mm (0,787 pol.) M61A1 Vulcan, canhão rotativo de 6 canos, 725 tiros.
Hardpoints: 7 com capacidade de 4.000 lb (1.800 kg), com provisões para transportar combinações de até
4  AIM-9B “Sidewinder”.

Motor

General Electric J79-GE-19;
Tipo: turbojato axial com pós-combustor;
Peso:1,750 kg (3.850 lb.);
Características gerais:
Comprimento: 5,3 m. (17,4 ft.);
Diâmetro: 1,0 m. (3,2 ft.);

Componentes:
Compressor: compressor axial de 17 estágios com palhetas de estator variável.
Combustores: canular;
Turbina: 3 estágios;
Empuxo máximo: 11.900 lbf (52,8 kN) seco; 17.900 lbf (79,6 kN) com pós-combustor;
Relação de pressão geral: 13,5:1
Fluxo de massa de ar: 170 lb/s (77 kg/s);
Temperatura de entrada da turbina: 1.710 °F. (932 °C.);
Consumo específico de combustível: 1,965 lb/(h·lbf) (200 kg/(h·kN)) com pós-combustor, 0,85 lb/(h·lbf) (87 kg/(h·kN)) em cruzeiro.
Relação empuxo-peso: 4,6:1 (45,4 N/kg).