A modelo, atriz e guerreira brasileira Thalita do Valle encontra o seu destino de maneira inglória, ao lado de mercenários e lutando por um causa dantesca: a Ucrânia atormentada por Azov, Aidar, Pravy Sektor e outros delírios.
Por: César A. Ferreira
No dia dois último chegou a notícia de que dois brasileiros que foram lutar na Ucrânia haviam morrido em função dos combates, o nome de um deles, todavia, causou num grupo seleto de pessoas que comentam assuntos militares, no qual este escriba se insere, consternação e estranheza: Thalita do Valle.
Thalita era mulher altiva e incansável. Como fácil de ver em todas as matérias que pululam a seu respeito, ela fora guerreira, enfrentou o Estado Islâmico[1] no Curdistão Iraquiano. Socorrista, atuou como voluntária no resgate de pessoas e animais nos desastres ambientais provocados pelos rompimentos das barragens de rejeitos minerais de Mariana e Brumadinho. Ativista, era defensora dos animais em especial da raça de cães Pitbull, para ela vítima do crime organizado que promove rinhas de cães. Inquieta, procurou a formação acadêmica em Direito, fora antes atriz e modelo. De modo resumido, esta era Thalita do Valle, brasileira, 39 anos.
A história desta guerreira, como podemos ver foi intensa. Desembarcou no Curdistão Iraquiano para trabalhar como socorrista, logo foi treinada para manusear fuzis, como autodefesa, momento em que o seu talento foi observado pelos instrutores. Treinada para tiro de precisão, camuflagem, orientação, escolta e deslocamento em combate, Thalita atuou no front iraquiano contra o Estado Islâmico defendendo a milícia Peshmerga[2], esteve também na Síria em apoio as formações do YPJ[3]. Atuando como franco atiradora, “sniper”, foi agraciada com o cobiçado título de “ISIS Hunter”. No Brasil, procurava manter as suas habilidades militares em dia, não só frequentava clubes de tiro, mas procurava aprimorar as suas capacidades de luta com armas brancas. Preocupava-se com a sua aptidão física, treinava com afinco. Ela teve enquanto no Iraque contato com instrutores norte-americanos, dado que os EUA são aliados da liderança curda de Erbil[4]; havia mulheres dentre os instrutores (USARMY & US Marines), algo inspirador.
Aqui chegamos na Ucrânia, onde a estranheza cobra a sua estada. Dentre todos os brasileiros presentes naquele teatro de operações, poucos poderiam exibir um currículo como o de Thalita. O fato do Brasil ser um país com quase todos os contenciosos de fronteira resolvidos por via diplomática até o início do século XX, acabou por não proporcionar conflitos entre estados que o envolvesse, com exceção da Primeira e da Segunda Grande Guerra, esta última com a presença de duas formações divisionárias que compunham a Força Expedicionária Brasileira, que combateu em solo italiano entre 1944 e 1945. Como se pode perceber resta aos brasileiros obter a sua experiência de combate no exterior, notadamente alistando-se na Legião Estrangeira da República Francesa, ou nas armas norte-americanas, onde é costume o alistamento com o intuito de se obter cidadania. No Brasil a experiência militar se resume a servir no Exército Brasileiro, força que por vezes envia destacamentos para participar de forças para imposição da paz sob a égide da ONU, ou na vida profissional como policiais, no combate ao crime organizado, em especial na Cidade do Rio de Janeiro, onde enfrentamentos com gangues de traficantes e milicianos são comuns e intensos, oferecendo experiência de confrontos em ruelas, becos estreitos e construções irregulares, típicas de um ambiente urbano densamente construído.
Neste contexto entende-se o vigor com que ela insistiu para ir ao front, desligando-se das atividades de socorro para participar dos combates. A permissão foi dada, afinal, o currículo dela gritava. Aqui começa a estranheza, pois se é verdade que ela era vibrante e guerreira, a causa e a companhia não lhe casavam com o espírito. A causa como sabemos é a defesa de um regime político que quer manter territórios ao leste do Dnieper a custa do interesse dos moradores locais e imbuído do sentimento de superioridade moral e racial, tipicamente nazista, fato este representado por formações que adotam símbolos das antigas “Waffen SS” como parte dos seus brasões, falo aqui do “Azov”, “Pravy Sektor”, “Aidar”, “Tornado”, “Kraken”, entre outros. A companhia é a de mercenários brasileiros, todos eles de extrema-direita, bolsonaristas, machistas, anticomunistas delirantes, adoradores de Trump e dos EUA, espalhafatosos e boquirrotos, que muito mais preocupados estão em aparecer no Instagram do que em lutar, tal como o afamado “Rambo de Hotel”, Leanderson Paulino[5], que diga-se, retornou ao Brasil. Já ela, bem mais discreta, apesar da proximidade com instrutores dos EUA no Iraque, era crítica à política deste país no Oriente Médio; feminista, não nutria simpatia alguma pela figura de Jair M. Bolsonaro. Como é possível que uma pessoa que combateu o sectarismo do Estado Islâmico vá defender em armas o sectarismo ucraniano? Só por estar na… Europa? Teria a massiva propaganda ocidental influenciado o julgamento de Thalita? Impossível responder, especular não ajuda…
Basta saber que ao contrário do que adoram bradar os mercenários brasileiros, não tivera Thalita e o grupo de combate na qual ela estava engajada, possibilidade de influir ou causar qualquer diferença nesta guerra. Estava ela e os seus companheiros de armas, um grupo formado por brasileiros e latino-americanos, notadamente colombianos, em campo nos arredores de Kharkov, quando buscaram abrigo numa casa abandonada. Esta casa começou a ser alvejada por projeteis de artilharia, reportados como sendo de morteiros, forçando o grupo de combate procurar proteção num bunker existente na casa abandonada. O incêndio decorrente do bombardeio fez com que o bunker doméstico fosse tomado pela fumaça, o que provocou debandada total dos combatentes. Thalita não saiu. Douglas Burigo[6], o outro combatente brasileiro retornou para retirá-la, quando foi alvejado pela segunda salva de granadas provenientes da bateria inimiga de morteiros. Douglas morreu com a explosão. Já Thalita foi encontrada sem queimaduras, no fundo do bunker, coberta por uma lona com a qual tentou se proteger do incêndio. Até o último momento tentou sobreviver, mas a fumaça era intensa e acabou por sufocá-la. No alto, corrigindo em tempo real o fogo de bateria, pairava um quadricóptero Mavic, que tudo registrava…
E assim Thalita encontrou o destino como combatente. Vestindo uma farda é verdade, porém que não lhe cabia. De combatente heroica da causa curda, o destino a encontrou como mercenária. Ainda que esses 39 anos tenham sido bem vividos esta morte não lhe faz jus, afinal, foi uma morte inglória em defesa duma causa falida.
Notas
[1]: EI – Acrônimo para Estado Islâmico em língua portuguesa. ISIS – acrônimo em língua inglesa para Islamic State Of Iraq And Syria.
[2[: Peshmerga: termo derivado do dialeto curdo, significa “os que enfrentam a morte”. Este termo é reservado para a milícia da cidade de Erbil, cidade que é capital do curdistão iraquiano, região semiautônoma do Iraque.
[3]: YPJ – Yekíneyên Parastina Jin, em português – unidade de proteção das mulheres. Braço militar feminino do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão). Não se subordinam à milicia de Erbil.
[4]: Erbil – Capital da região semiautônoma do curdistão iraquiano.
[5]: Leanderson Paulino – brasileiro, 27 anos. Ex-militar do 72º Batalhão de Infantaria Motorizado. Alistado como mercenário da Legião Estrangeira da Ucrânia, ficou famoso por se deixar fotografar fardado e equipado com constância nos salões dos hotéis ucranianos. Mercenários ingleses o alcunharam de “Rambo de Hotel” (ing. “Hotel’s Rambo”).
[6]: Douglas Burigo – brasileiro, 40 anos. Mercenário na Ucrânia, morreu ao tentar salvar Thalita do Valle. Tinha como experiência militar apenas o período de quatro anos de serviço no Exército Brasileiro. Relatou em mensagem para parentes o receio de não sobreviver em função da brutalidade da artilharia russa.